sexta-feira, 23 de julho de 2010

O fato

À guisa de orientação: este texto foi publicado originalmente na revista "Quadro-Negro e Giz", editada pelo Centro de Professores do Colégio Anchieta de Porto Alegre em dezembro de 1992. Originou-se de um exercício de escrita e leitura. Inicialmente ao leitor pode parecer que ele não tenha sentido algum. Sugiro uma primiera leitura sem compromisso; depois dessa leitura inicial, procure o significado da palavra "fato". Acredito que a partir do seu entendimento o texto passará ter sentido. Espero comentários.

Sempre que se aproxima a primavera, lembro-me de contar esta história ocorrida bem-não-sei-quando, em algum lugar do mundo, lá pelos lados daqueles países nas fraldas do Himalaia, um quistão qualquer.

É sobre um fato. Um fato que sempre aparece com a chegada da primavera (e por isso, decerto, minha lembrança). Este fato não tem história precisa. As novas gerações o conhecem, as antigas sempre o conheceram e, provavelmente, as futuras o conhecerão também. Naturalmente que, com o passar dos anos, o fato não é o mesmo, pois, acredito, no mínimo a cada cinquenta anos ele deve estar totalmente modificado (não entendo muito dessas coisas, de longevidade, principalmente).

Não se sabe ao certo porque ele aparece no início da primavera. Provavelmente ele desce das montanhas (que é sua origem) aproveitando o degelo, o fim do inverno, e as pastagens renovadas das planícies.

Muitos tentaram localizar, também, a origem certa do fato, mas todos falharam, pois ele se perde nas montanhas e esconde-se onde nenhum ser humano de bom senso possa penetrar.

Atualmente, pelo que me parece, as pessoas já se acostumaram com a chegada do fato e até se preparam para recebê-lo. Dizem que é uma das coisas mais bonitas essa espera. Ele chega à noite, com bastante barulho; homens, mulheres e crianças formam cordões com tochas para conduzi-lo à planície, onde a grama é viçosa. Criançada que se preze, com mais de quatro anos de idade, não dorme na noite da chegada do fato.

Contam que houve época em que tentaram prendê-lo, mas foi tudo em vão, pois a resposta à busca de liberdade foi dada com a morte da maioria, deixando no ar uma tristeza muito profunda e um sentimento de culpa que perdurou por muito tempo na memória dos habitantes do lugar.

O fato já faz parte do próprio lugar, das pessoas, da vida primaveril de seus habitantes. Ele é esperado, é recebido e, com a mesma festa que chegou, também é deixado voltar para seu lugar de origem, ao fim da primavera. E isto é também muito estranho: por que só na primavera, exatamente, ele permanece na vila? Por que não fica verão adentro?

É um fato extremamente pacífico,  a ponto de as crianças conviverem no meio dele fazendo travessuras. Nunca se soube de criança que fosse atacada, agredida. O contrário é que muito acontece, mas sempre que possível a intervenção dos pais serve para aumentar o respeito e o carinho das crianças pra com ele.

Nunca ninguém viu um macho junto. Acredita-se também que eles fiquem à espera do fato, escondidos nas montanhas. Provavelmente eles não tenham a mesma necessidade de se alimentarem porque não aleitam e, sabe-se, para um leite bem forte e gorduroso, nada melhor do que uma pastagem também sadia, que deve ser escassa na montanha.

O fato é um mistério. Um eterno mistério. E, enquanto for um mistério, ele existirá para quem quiser vê-lo. Ele vem e volta, sempre num ciclo tão regular que hoje este é o único ponto de referência de confiança para a chegada realmente da primavera. Melhor que a floração, melhor que as constelações.

2 comentários:

  1. Grande abraço mestre Gomes. De volta às atividades.

    Céu limpíssimo a você.

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  2. Caro amigo, isso é muito forte para a geografia. Fato? Sei não...

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